Cap 8: Lama
A próxima memória era de apenas 1 mês a frente, desta vez ele estava em um prédio feito para abrigar crianças como ele, a decoração consistia em algumas grades, cercas e uns desenhos apagados na parede.
A decoração tentava dar a impressão de que em algum período do passado esse lugar foi alegre, talvez durante alguns segundos antes da inauguração.
Guaracy estava com um machucado enorme, que ia da bochecha até a parte que faltava da orelha, era meio dia e ele estava sentado com muitos outros garotos.
“iai Cicatriz, é hoje que você sai né?”
“É… eles acharam uma tia minha” dizia Guaracy enquanto tentava terminar o almoço.
“Ela mora longe?”
“Haha.. ela mora na mesma comunidade, mas como a minha mãe estava brigada com a família, eu nunca tinha visto ela, talvez ela já tenha me visto, quando eu era bem pequeno”.
Um dos funcionários chegou perto da mesa e disse ”Guaracy, pega as suas coisas e vá até a portaria, você vai ser liberado em alguns minutos”.
Como Guaracy não tinha nada para pegar, ele se despediu de alguns colegas que ele tinha feito no abrigo e foi direto para a portaria.
Além dos funcionários de sempre, Guaracy viu um casal de meia idade, eles pareciam desconfortáveis ali, como se tivessem sido obrigados.
Ela se chama Maria e estava vestida como as mulheres que ele via entrando na porta da igreja, só a cabeça e as mãos visíveis, Guaracy sempre achou engraçado como eles podiam se vestir assim no calor, mas de resto ela se parecia com ele, cabelo preto liso, pele avermelhada e 1,50m de altura.
Eles pegaram o ônibus até a comunidade e chegaram em um sobrado simples, “Será que eles são ricos?” pensava Guaracy quando via o tamanho da casa.
Mas a opinião dele mudou bastante quando soube que moravam 15 pessoas na casa e que a cama dele seria um tecido no canto de um dos cômodos.
Enquanto eles estavam apresentando ele para aos outros membros da Família, um dos tios dele disse “E a sua mãe? ela apareceu?”
“Haha... E ser presa?” disse o tio que o trouxe.
Guaracy olhou para ele e disse “Ela com certeza vai voltar…”
“Já faz mais de um mês..” disse o tio.
“Quando ela precisar de dinheiro ela aparece…” disse a tia dele enquanto pegava umas roupas para Guaracy usar ”ela sempre foi assim...”
*
*
Agora Guaracy se via no meio de uma multidão em uma rua escura revivendo o primeiro dia de aula do colégio, ele nunca gostou de andar a noite nessas ruas, mas como muitos dos alunos do colégio trabalhavam, essas escolas só ofereciam aulas a noite.
A frente da escola ficava bem cheia, pois era a única parte da rua bem iluminada, mas Guaracy não precisava se preocupar com isso, a maioria não tinha coragem de ficar perto dele.
Guaracy tinha deixado o cabelo crescer para cobrir a orelha mutilada, mas a cicatriz começa na boxexa e isso ele não conseguia esconder.
“O maior problema da cicatriz é que eles sempre me convidam para uma gangue… e a polícia adora me parar” pensava enquanto andava pelos corredores da escola.
“A única diferença dessa escola com a prisão é a pintura… quatro portões em um único corredor… até a tv de tubo está dentro de uma gaiola”
“Guaracy?”
Ele se virou e viu um garoto sorrindo enquanto olhava para ele.
“Paulo?... você não tinha se mudado?”
“É muito bom te ver… meu pai tinha achado um emprego melhor no interior, mas não deu certo…”
“Que pena.. vocês vão voltar para a casa da sua avó?”
“Sim... lembra que eu te disse que meu pai tinha participado de uns campeonatos de judô na infância?”
“você me disse.. ele pegou ouro uma vez, não foi?…”
“Sim!.. Ele tinha arranjado um emprego em um dojô no interior, mas como não deu certo ele vai abrir um na garagem da minha vó... quer participar?”
“Parece legal”
“Fechado! amanhã você dá uma passada lá em casa… Cara... que cicatriz é essa?”
“Eu tomei um tiro em uma briga com o namorado da minha mãe… mas ele terminou bem pior no final… ”
“E deu alguma coisa com a polícia?” disse Paulo preocupado
“Nada… foi auto defesa e ele só teve que passar uns meses no hospital antes de ir para cadeia por tráfico”.
“Paulo quem é ele?…” disse uma garota segurando um livro, o uniforme dela era todo personalizado, mas o que mais chamava a atenção era o cabelo azul claro contrastando com a cor escura de pele.
“Guaracy essa é a minha prima Yara”
“Oi..”
“Que cicatriz legal…” disse ela.
“a…?”
“Você ia ficar muito daora fazendo cosplay… agente pode até participar de eventos..”
“Eu não estou entendendo nada do que você está falando..”
Paulo olhou para ele e disse “haha… Não se preocupe… ela vai continuar falando disso...”
*
*
Passados 6 meses, Guaracy estava mais acostumado a viver com os tios, ele treinava Judô com o Paulo e a Yara na parte da manha e atarde ele começou a ajudar nos negócios da família, ou seja, vender diversos tipos de coisas na praia.
Guaracy estava com uma caixa de isopor debaixo do braço e na outra mão uma sacola com protetor solar e outras coisas, quando viu Paulo, yara e alguns outros colegas de sala jogando futebol de praia.
“Ai Guara, vem jogar com a gente” disseram vários da turma.
“Não dá… eu ainda tenho mercadorias para vender..”
Paulo olhou para os outros e disse “A Gente ajuda, cada um pega um pouco e nós terminamos de vender rapidinho”
“Sim.. vamos lá pessoal!... eu pego os Chapéus” disse Yara.
Os outros da turma hesitaram um pouco, mas não era tanta coisa assim e estavam 15 ali para ajudar, cada um pegou um pouco e em meia hora Guaracy tinha vendido mais do que ele venderia em 2 dias.
Eles ficaram na praia a tarde toda e decidiram parar em uma lanchonete antes de voltar para casa.
“Vocês ficaram sabendo dos desaparecimentos?” disse um dos garotos.
“Deve ser briga de gangue como sempre…”
“Nada.. eu soube que quando eles estavam procurando por uma das vítimas, uma das testemunha disse que que viu a garota desaparecer em pleno ar”.
“Você está me dizendo que foram aliens?.. haha o cara provavelmente estava chapado...”
Enquanto os outros continuavam a discussão, Paulo disse ”Ai Yara, você assistiu o último episódio de demon slayer?”
“Eu baixei, mas não assisti... Guaracy você curte anime?”
“Eu nunca assisti nenhum…”
“Me empresta o seu celular que eu vou te passar alguns”
*
*
Guaracy escutou Ni Wodàyn dizer ” Vamos olhar com maior cuidado para as suas memórias recentes, vamos ver se alguma delas explica a sua aparição em meu mundo”
Essa memória era bem recente, só 15 dias antes de Guaracy ir para a floresta, ele estava no segundo ano do colégio mais precisamente na biblioteca.
Como esse ano eles não tiveram a sorte de ficar na mesma sala, eles sempre passavam o intervalo e algumas horas antes da aula na biblioteca estudando para o vestibular.
Yara parecia sempre estar com um livro nas mãos, ela se sentou ao lado dele e disse “Você viu o Paulo hoje? ele nunca falta”
“não sei.. tentou ligar para ele?”
“Eu liguei, mas ele não responde”
“Talvez ele tenha ficado de castigo... depois da aula a gente passa no dojo, esse livro aí é novo?”
“Sim, ele é ótimo! é a história real de uma mulher chinesa que foi capturada por um pirata, tomou o poder e expandiu chegando a ter 300 navios e uma tripulação total de quase 40000 piratas”.
“Legal… quando você terminar me empresta”.
“Ok.. ha é .. você disse que ia na tribo com a sua família.. como foi? ..”
“Nós voltamos hoje de manhã… Meus tios foram fazer um culto lá... “
“E como é na tribo?”
“O clima estava muito tenso... o conflito com os madeireiros está ficando cada vez mais sério.. mas a visita Foi legal.. deu para conhecer uns parentes, só o ar que é esquisito... ”
“Haha.. É que você está acostumado com a fumaça constante..”
*
*
Dois dias depois, Guaracy e Yara andavam pela comunidade tentando encontrar Paulo, ele saiu de casa para ir para a escola e não foi mais visto.
Eles estavam conversando com um dos ‘amigos’ de infância do Guaracy, João é um membro da facção que controlava a maior parte da comunidade.
“Você tem certeza que ele não fugiu de casa? os pais dele eram bem caretas”disse joão
“Ele não tinha problemas com os pais e ele estava super empolgado com um jogo que ele tinha acabado de comprar..” disse yara.
“Eu perguntei para o pessoal, ninguém viu ele… como ninguém pediu resgate... provavelmente foi a milícia ou uma gangue de fora da comunidade”
“Ele não morreu… as vezes…”
“Yara, vamos parar por hoje, eu vou com o João até as facções vizinhas e amanhã nós continuamos perguntando pela comunidade…”
“Eu vou ir junto”
“É melhor não, como eu não conheço os caras, eu vou só dar uns trocados em troca de informação”
“Vai ser de boa! eu conheço uns deles..” disse João.
“Ok, mas tenta ficar seguro”
Guaracy acenou e desceu a rua com João, quando eles se afastaram um pouco João disse ”Você sabe que eles não sequestram garotos pobres…”
“Sim… vamos falar com o velho chico, ele conhece a maioria das valas comuns” O rosto de Guaracy não tinha mas traço algum do sorriso que ele tinha dado para Yara.
As 11h do dia seguinte, Guaracy estava com lama até o joelho, no dia anterior ele tinha ido em 2 locais de desova, mas ele não tinha encontrado o corpo de Paulo.
Ontem a noite ele recebeu uma dica, dizendo que nos dias anteriores a milícia tinha enterrado uns corpos debaixo desta ponte, o rio era raso e acomulava muita lama e lixo nessa parte, fazendo deste um lugar perfeito para esse tipo de atividade.
“Quanta gente… a merda é que é a polícia que usa essa vala… eu tenho que arranjar um jeito de reportar esse lugar anonimamente, não estou a fim de que batizem um terreno novo com o meu nome.”
Ele parou quando ouviu o celular tocar, “Eu esqueci que eu tinha combinado com a Yara..” pensava enquanto tirava as luvas para atender o telefone.
Esse número eu não conheço ” Quem está falando?”
“Guaracy? a família do Paulo me passou o seu número, aqui é a mãe da Yara“ o coração dele quase parou.
“O que aconteceu?...”
“Ontem ela saiu dizendo que ia para a escola e não voltou até agora… nós fomos em todos os lugares, mas….”
Guaracy não consegui escutar o resto, o celular já estava caído na lama.
Comentários
Postar um comentário